O sujeito nasceu na Ucrânia, de família polonesa. Foi marinheiro na França e, em seguida, em navios mercantes ingleses. Aos 20 anos começou a aprender a língua de Shakespeare e a aprendeu tão bem que tornou-se um dos maiores e mais importantes escritores de língua inglesa. Senhoras e senhores: com vocês Józef Teodor Konrad Korzemowski, mais conhecido como Joseph Conrad.

Conrad é um contador de histórias na melhor acepção da palavra, também um profundo conhecedor da natureza humana, especialmente nos seus pontos mais cruéis e obscuros.

Em “A linha da sombra” (The shadow line), ele narra a jornada de um jovem marinheiro que, depois de alguns anos de trabalho, está insatisfeito com sua vida. Especialmente por ter empacado na sua carreira no posto de suboficial nos seus navios. Durante uma parada em um porto de trânsito, ele reflete sobre isso e resolve abandonar a carreira e voltar para a Inglaterra em busca de um novo destino.

Enquanto aguarda a passagem de algum navio que o leve de volta para casa, ele recebe uma proposta inesperada: a de assumir o comando de um navio para leva-lo até Bangkok, em substituição ao capitão anterior que morreu em circunstâncias não explicadas. Empolgado em retomar a carreira em outro patamar, ele aceita o desafio que seria muito maior do que ele poderia imaginar.

Aqui encontra seu primeiro desafio provocado por outro capitão, bem mais experiente que está desempregado e estacionado no mesmo porto que tenta boicotar sua indicação em benefício próprio.

O segundo foi o de receber uma tripulação bem mais velha e experimentada que ele. Ainda que não o tenham rejeitado, desconfiam da sua capacidade.

Navio preparado eles zarpam e, não muito tempo depois de se afastarem do porto de origem, ficam presos em uma calmaria – não esquecendo que a história se passa em uma época que o vento era o único motor dos navios.

Para piorar, o seu suboficial adoece de uma febre típica dos mares tropicais da região e, ao abrir o compartimento de medicamentos, o jovem capitão descobre que seu estoque de quinino (único remédio disponível para essas febres) tinha sido roubado e trocado por um placebo qualquer. Não custa explicar que o quinino era um produto valioso na região, não por acaso ficava trancado na cabine particular do capitão do navio.

A “linha” que o jovem marinheiro cruzou ao aceitar comando é uma fronteira imprecisa. Imagine a sombra de um objeto projetada no chão: ela não tem um limite exato. Ao contrário de uma linha traçada a lápis com separação clara, a linha formada por uma sombra é difusa, ampla, esmaecida. O ponto exato onde a luz se transforma em sombra é difícil de identificar.

Não muito diferente das linhas que se apresentam nas mudanças das nossas vidas, não são abruptas e precisas, mas graduais como numa transição. Atravessar essas linhas é como navegar por um oceano nebuloso, muito mais do que simplesmente atravessar um fronteira clara e bem definida. Nesse momento, os contornos da realidade tornam-se turvos e incertos.

Na vida profissional acontece o mesmo. Nem sempre as transições são tão abruptas quanto a do marinheiro de Conrad, O que entendemos como realidade clara pode ser muito mais sombrio do que imaginamos.

O etarismo como barreira às linhas de sombra

O jovem capitão de Conrad enfrenta algo que transcende a mera desconfiança profissional: o etarismo reverso, aquele preconceito sutil mas persistente que nega oportunidades baseado apenas na idade cronológica. “Falta experiência”, “é muito imaturo”, “não tem vivência suficiente” . Essas frases, aparentemente sensatas, frequentemente mascaram um preconceito que ignora competência, preparação e potencial.

O etarismo contra os jovens manifesta-se hoje de múltiplas formas. O jovem empreendedor que apresenta sua startup para investidores experientes e enfrenta olhares céticos antes mesmo de abrir a boca. O recém-formado em medicina que precisa provar diariamente que sua juventude não significa incompetência. A engenheira de 25 anos que, apesar da formação sólida e das certificações técnicas, precisa constantemente validar suas decisões perante colegas mais velhos.

No ambiente corporativo contemporâneo, essas tensões geracionais criam verdadeiros abismos. Millennials e Gen Z são frequentemente rotulados como “impacientes”, “superficiais” ou “sem comprometimento”, enquanto suas contribuições únicas: familiaridade natural com tecnologias emergentes, capacidade de questionar paradigmas estabelecidos, energia para mudanças e menor apego ao “sempre foi feito assim” são sistematicamente subestimadas.

Os três grandes desafios das linhas de sombra

a) Reconhecer a sua inexperiência diante dos seus liderados, bem mais calejados no negócio

Este é talvez o paradoxo mais cruel do etarismo reverso. A experiência, inquestionavelmente valiosa, torna-se uma barreira intransponível quando usada como único critério de avaliação. O jovem líder precisa navegar entre reconhecer genuinamente suas limitações e não se deixar paralisar pela constante necessidade de “provar-se digno”. Conrad mostra que o jovem capitão, justamente por não estar amarrado aos vícios dos métodos tradicionais, consegue enxergar soluções que escapam aos mais experientes.

b) Deparar-se com uma situação diante da qual nada pode fazer, a não ser esperar

A calmaria que prende o navio é metáfora perfeita para aqueles momentos em que nem juventude nem experiência oferecem respostas imediatas. Crises econômicas, pandemias, transformações tecnológicas. Situações onde todos, independentemente da idade, precisam navegar pela incerteza. Nestes momentos, a capacidade de adaptação dos jovens, sua menor resistência a mudanças de paradigma, pode ser mais valiosa que décadas de experiência em cenários que já não existem.

c) Descobrir que não existem os recursos que deveriam estar disponíveis

O quinino roubado representa todas aquelas promessas não cumpridas que os jovens encontram ao assumir responsabilidades. O “você vai ter todo o suporte necessário” que se transforma em recursos escassos, orçamentos cortados, equipes reduzidas. A descoberta de que o mundo profissional é menos estruturado e mais improvisado do que os manuais sugerem.

O paradoxo da experiência

As linhas de sombra surgem em diferentes momentos da vida profissional contemporânea. A transição para um cargo de liderança continua sendo uma das mais comuns, mas hoje vemos emergir outras igualmente desafiadoras:

O jovem fundador de startup que precisa convencer investidores sexagenários de que entende de tecnologia blockchain melhor que eles. A recém-formada em análise de dados que trabalha com algoritmos que seus supervisores mais experientes sequer compreendem. O designer de 24 anos que lidera projetos de experiência digital para uma empresa centenária.

Nestes cenários, o etarismo reverso cria uma armadilha epistemológica: nega-se valor ao conhecimento novo em favor da experiência estabelecida, mesmo quando esta experiência se refere a contextos que já não existem. É como insistir em usar mapas antigos para navegar territórios recém-descobertos.

Conrad, de forma brilhante, mostra que o jovem capitão, apesar de toda sua inexperiência, consegue liderar a tripulação através da crise justamente porque não carrega os vícios dos métodos tradicionais. Sua perspectiva fresca, não contaminada por décadas de “sempre fizemos assim”, permite-lhe ver soluções que escapam aos mais experientes.

Organizações que sistematicamente privilegiam a experiência em detrimento da inovação criam um círculo vicioso: perpetuam métodos obsoletos, resistem a mudanças necessárias e, ironicamente, tornam-se menos competitivas. O jovem que questiona “por que fazemos assim?” não está sendo desrespeitoso; está sendo cientificamente rigoroso.

A verdadeira sabedoria organizacional deveria residir na síntese entre a experiência acumulada e a perspectiva renovadora.

O meio termo artificial e a complementaridade necessária

Curiosamente, tanto o etarismo contra idosos quanto o etarismo contra jovens criam um “meio-termo artificial” onde apenas uma faixa etária específica (geralmente entre 35 e 55 anos) é considerada ideal. Esta visão estreita ignora que diferentes momentos da vida oferecem diferentes tipos de contribuição.

Os jovens trazem energia, familiaridade com novas tecnologias, menor resistência a mudanças e capacidade de questionar paradigmas. Os mais experientes oferecem perspectiva histórica, conhecimento de padrões de comportamento humano, capacidade de antecipar consequências e sabedoria para navegar complexidades políticas e relacionais.

A eliminação de qualquer uma dessas perspectivas empobrece dramaticamente o ambiente de trabalho e a capacidade de inovação das organizações.

Na vida profissional de hoje, as transições nem sempre são tão abruptas quanto a do marinheiro de Conrad, mas continuam sendo nebulosas e desafiadoras. O que entendemos como realidade clara pode ser muito mais sombrio do que imaginamos.

Cada pessoa precisa construir o seu próprio repertório de razões e emoções, a partir das suas experiências de vida, especialmente daquelas adquiridas em cada linha de sombra que já cruzou. Mas este processo não pode ser prejudicado por preconceitos etários que limitam artificialmente as oportunidades de crescimento.

A vida como sistema complexo

A vida, como acontece em qualquer tipo de sistema, não é um sistema fechado (esses só existem em laboratórios e, mesmo assim, sofrem interferências). Está sujeita a incertezas e à emergência de acontecimentos incontroláveis. As linhas de sombra estão lá para nos lembrar que não existe crescimento linear e retilíneo.

Essas linhas envolvem escolhas pessoais e são impossíveis de serem cruzadas sem consciência dos próprios mecanismos emocionais e racionais de cada pessoa. Mas também não podem ser atravessadas em um vácuo social onde preconceitos etários limitam artificialmente as oportunidades de experimentação e crescimento.

O etarismo, seja contra jovens ou idosos, funciona como uma tempestade adicional que dificulta a navegação pelas linhas de sombra naturais da vida. Quando uma sociedade nega oportunidades baseada apenas em critérios cronológicos, está essencialmente impedindo que indivíduos desenvolvam sua plena capacidade de atravessar essas transições formativas.

O mapa metafórico para versões melhores

Conrad nos oferece um mapa metafórico poderoso para nos tornarmos versões melhores de nós mesmos, seja na completude, seja na profundidade. Mas, como sabemos, ele não é um manual de instruções, apenas um sinalizador que deixa as imagens menos nubladas, mas nunca totalmente nítidas. Até porque a vida é muito mais complexa do que qualquer manual possa querer ensinar.

O jovem capitão de Conrad consegue superar suas linhas de sombra não apesar de sua juventude, mas também por causa dela. Sua energia, sua perspectiva não viciada, sua capacidade de questionar o estabelecido – tudo isso são recursos valiosos para navegar pela incerteza.

Em uma época onde tanto jovens quanto idosos enfrentam preconceitos etários sistemáticos, a história de Conrad torna-se ainda mais relevante. Ela nos lembra que o crescimento acontece na interseção entre desafio e oportunidade, e que negar oportunidades baseado apenas na idade é uma forma particularmente cruel de impedir que indivíduos descubram suas próprias capacidades de liderança e superação.

As linhas de sombra estão aí, esperando para serem atravessadas. A questão é se teremos a sabedoria coletiva de permitir que pessoas de todas as idades naveguem por suas próprias jornadas de crescimento, contribuindo com suas perspectivas únicas para um mundo que precisa tanto da energia dos jovens quanto da sabedoria dos experientes.

Afinal, como nos ensina Conrad, navegar pelas linhas de sombra é uma jornada eminentemente humana. E a humanidade não tem idade específica.


[1] Esse texto surgiu de uma provocação do Fernando Barichello sobre o livro de Conrad.

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