“Humankind cannot bear very much reality.”

(T.S.Eliot – Four Quartets)

Caso a nossa humanidade se apercebesse das possibilidades infinitas do pensamento, poderíamos chegar a um olhar mais otimista em relação ao futuro. Não é o caso.

Chega a ser quase um lugar-comum a afirmação de que tudo que é previsível e repetitivo será automatizado. Na prática, isso já acontece há tempos e não é uma circunstância provocada exclusivamente pela inteligência artificial, ainda que essa tenha potencializado essa possibilidade.

O pensamento repetitivo é a base do senso comum e nos induz a sermos fiéis a ele. É mais confortável pensar como todo mundo. A sabedoria convencional é dizer o que outros esperam ouvir.

Etiénne de la Boétie, então com 18 anos, escreve “Le Discours de la Servitude Volontaire” (1552)[1], demonstrando que a gênese da opressão exercida pelos poderosos aos menos favorecidos é atemporal e universal e esmiúça os porquês que levam a multidão a se permitir escravizar, cega e voluntariamente, a se dispor a servir.

Mas o homem se deixa escravizar de bom grado por três motivos. O primeiro é o hábito, iludido por aquilo que parece ser mais seguro e confortável (no nosso caso, lembrando que a promessa do progresso e das tecnologias é a de tornar a nossa vida mais fácil e mais prazerosa).

O segundo é a covardia. Ainda que o medo possa ser benéfico em situações de risco real, funcionando como uma medida de proteção, ele carrega mais atributos negativos do que positivos. Quando é exagerado, é chamado de pavor. Quando é patologicamente doentio recebe o nome de fobia, em homenagem a Fobos, filho de Ares e Afrodite, que tinha o poder de infundir o medo e a covardia nas tropas inimigas.

Vivemos em tempos de fear mongering – disseminação de rumores assustadores e exagerados de um perigo iminente de despertar propositalmente o medo a fim de manipular as pessoas. Medo social tampouco é um fenômeno nascido na modernidade líquida. A pressão do pares (peer pressure) é uma atividade comum desde a nossa mais tenra idade, ainda que se manifeste de forma mais exacerbada quando começamos a frequentar a escola (e todos os meios sociais subsequentes), geralmente em forma de bullying.

O que mudou, em tempos de sociedade em rede e na vida digital é que essa pressão agora vem de todos os lados:  através das redes sociais, através dos algoritmos dessas mesmas redes e dos aplicativos.

Aqui caímos numa situação quase aporética: ao mesmo tempo em que todos se orgulham de ser “livres-pensadores” ou, pelo menos se arrogam ao direito de não precisar concordar com nada ou com ninguém, nos pelamos de medo de ficar de fora do centro do nicho ou do centro de nós mesmos. O medo de ser considerado um pária de si mesmo? O esdrúxulo, o excêntrico, o irrelevante?

Vikram Mansharamani, professor americano, autor do fabuloso “Think for yourself”, diagnostica o medo de ficar de fora (FOMO –  fear of missing out) como o mais evidente problema da nossa sociedade e propõe caminhos para a restauração do bom senso e do controle das decisões.

Em um mundo em que o pensamento é cada vez mais raso, mais moldado por fórmulas de sucesso, menos crítico nas escolhas, tudo está se tornando previsível e repetitivo. E, nesse caso, tudo se torna automatizável, e esse talvez seja o maior dos medos, a insegurança em relação a um futuro recheado de incertezas quanto a profissões e empregos.

O terceiro motivo, é a participação na tirania, La Boétie aponta quem são os interesseiros que se deixam seduzir pelo esplendor das riquezas sob a guarda dos poderosos, os que, em conluio, garantem e asseguram seu poder. Como numa rede social, o dono do poder se apoia em meia dúzia de asseclas que, por sua vez são, cada um deles, apoiados por outra meia dúzia e assim, de forma exponencial, atingir a massa.

A manipulação das massas aumenta à medida que a inteligência humana diminui e estamos entrando na era do pastoreio dos robôs. O discurso que a IA servirá para que as pessoas se dediquem mais a si mesmas é uma falácia que beira o ridículo. Teremos mais tempo para sermos zumbis.

A mídia e os escatologistas de plantão adoram histórias sobre o momento em que os computadores se tornarão mais inteligentes que as pessoas, alcançando a consciência e assumindo o controle. Nesse sentido, o termo “singularidade” foi adaptado por Vernor Vinge (1993), que afirmou que “dentro de 30 anos, teremos os meios tecnológicos para criar inteligência sobre-humana. Pouco depois, a era humana terminará.” Essa ideia foi popularizada por Ray Kurzweil em seu livro de 2005, “The Singularity is Near”. Kurzweil explicou como os computadores, especialmente a Inteligência Artificial, combinados com descobertas em genética, nanotecnologia e robótica, criarão uma condição na qual a inteligência da máquina ultrapassará a inteligência humana. Kurzweil não estava escrevendo ficção científica. Ele descreve essa singularidade não apenas como uma possibilidade real, mas inevitável.

Essa segunda singularidade descreve o que poderá acontecer à medida que conhecimento humano não está aumentando na mesma progressão que os computadores inteligentes estão ficando mais poderosos, em algum momento o ponto onde as duas curvas se cruzam e a curva do computador inteligente ultrapassa a curva do conhecimento humano será o momento singular.

Como em outras previsões, aqui também temos controvérsias, muitos pesquisadores e filósofos criticaram Kurzweil e argumentaram que a singularidade não está próxima. Mas a segunda singularidade não é apenas sobre computadores ficando mais poderosos, mas a redução simultânea de conhecimento que estamos vendo em muitos lugares. À medida que as organizações terceirizam a autoridade de tomada de decisão para as máquinas, os trabalhadores terão menos oportunidades de se tornarem mais inteligentes, o que apenas incentiva mais terceirização. A segunda singularidade está, na verdade, muito mais próxima de nós no tempo do que a ideia original de uma singularidade de Kurzweil.

Por razões práticas, as organizações querem reduzir sua dependência de especialistas. É preciso tempo e financiamento para desenvolver especialistas, por isso é mais barato confiar em algoritmos ou máquinas.[2]

Sob risco de ser execrado por fundamentalistas de todas as cepas, ouso concluir que uma vez que o pensamento instrumental é predominante ao extremo e esse pensamento faz com que quase todo ser humano esteja contaminado pela doença do pensamento (imediatismo, superficialidade e simplismo), todas as nossas atividades tornar-se-ão previsíveis e repetitivas, especialmente as atividades intelectuais, geralmente excluídas das tarefas repetitivas pelos otimistas ingênuos da inteligência artificial.

Como disse anteriormente, em um mundo onde para tudo existe uma regra, uma fórmula, uma receita de bolo, tudo que é formulável é algoritmo, previsível e repetitivo: será automatizado.

A frase então deixa de ser que aquilo que é previsível e repetitivo será automatizado para ser simplesmente: tudo será automatizado.

No limite, todos nós seremos substituídos por alguma tecnologia de inteligência artificial, seja em 10, 50 ou 5.000 anos.

Claro, se nosso progresso não destruir o mundo antes disso.


[1]  De La BOÉTIE, Etienne. Discurso da Servidão Voluntária. Editora Brasiliense. São Paulo, 1982

[2] KLEIN, Gary. The second singularity. Psichology Today. 2019. Disponível em https://www.psychologytoday.com/gb/blog/seeing-what-others-dont/201912/the-second-singularity

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